quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Feminismo cotidiano


Hoje fui cortar o cabelo e a TV do salão estava ligada no programa da Ana Maria Braga que, surpreendentemente, não fez uma cobertura ruim sobre o caso da mulher que foi torturada e teve os dois olhos perfurados pelo ex-marido (de quem havia se separado há dois anos e chegado a mudar de cidade pra fugir dele). Mostraram uma entrevista com ela (chorei assistindo) e no final a Ana Maria até deu uns toques legais. Falou que é para as mulheres ficarem atentas aos primeiros sinais de agressão, mesmo que sejam verbais; falou que mesmo que seja casada, se um dia você não quiser transar e seu marido te forçar, isso é estupro e tem que ser denunciado. Quando ela disse isso, uma mulher que estava lá falou: "Nossa, estão ensinando tudo errado!". Eu, estarrecida, perguntei "Como assim?". E ela continuou: "Você é casada? É que quando a gente casa, a gente aprende que nosso corpo não é mais nosso, ele passa a ser do marido". O choque, então, foi maior ainda!
Muito maior, inclusive, do que com o comentário de uma outra que, minutos antes dessa, havia dito que "tem mulher também que procura". Esse comentário, na real, a gente escuta mais (mas nunca deve ser tomado como "normal" e muito menos aceitável), a questão é que, com essa, eu dialoguei e perguntei "o que é 'procurar'?", daí, conversa vai, conversa vem, ela acabou concordando que, em linhas gerais, nada justifica a agressão. Já foi uma avanço.
Mas a que disse que o corpo é a propriedade do marido, começou a ficar agressiva quando eu comecei a tentar conversar sobre isso e logo me tirou e começou a conversar com outras. No papo, percebi que ela era evangélica, dai, explica-se um pouco da frase acima. Mas, mesmo assim, não é só a religião que explica esse tipo de pensamento! Infelizmente, esse o pensamento mais comum entre todxs.
Saí de lá angustiada e estou até agora. O caso de uma mulher torturada que ficou cega deveria servir para que refletíssemos e lutássemos mais ainda contra o machismo, e não para gerar comentários desse tipo.
Nessas horas, além de me sentir impotente - afinal, não obtive êxito na tentativa de diálogo com uma delas e sei que minha palavra nunca seria nada perto dos sermões do pastor -, percebo, mais ainda, o que sempre falo: a luta contra o machismo é, e só pode ser, diária, toda hora, no salão, no ônibus, na conversa com a avó, seja lá o que for. Maria da Penha, Delegacia da Mulher, políticas públicas, discussões teóricas são extremamente importantes e devem vir concomitantes com essa militância tida por alguns como “menor”, de todo dia, de tentar ir quebrando esse pensamento machista arraigado até mesmo entre mulheres. O feminismo tem que conseguir chegar onde o pastor chega, tem que ir pra periferia, tem que dialogar com essas mulheres que não são culpadas por pensarem assim, afinal, elas foram ensinadas e reforçadas todos os dias assim. É preciso saber lidar com isso, saber dialogar de forma fraterna com essas companheiras. Mas, como? Em momentos assim, percebo que, apesar de tantos avanços (que muitxs nem sabem) a luta feminista ainda não é nada para muita gente e precisa conseguir chegar nesses e em todos os espaços: da conversa entre manicures aos cursos de formação, políticas públicas, etc.
Pensei em elaborar melhor esse texto/post, mas, na real, foi mais um desabafo mesmo. Elaborações teóricas e acadêmicas teriam pouca serventia para explicar a angústia que estou sentindo.  

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Save the scene (?)

Quem vai "tampar o buraco"
de uma cena que vive de aparências?
O que lhe falta é vivência.
E eu não me importo com sua dita experiência

Quem vai tampar o buraco
E esconder o seu machismo
Lidar com seu especismo
E uma galera que fala (sem saber) sobre niilismo

Quem vai tampar o buraco
E fazer um discurso profundo
Enquanto outros ficam mudos

Quem vai salvar a cena?
Do seu pai podem vir os mirréis
Mas estão todos, no fundo, representando papéis.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Estado Laico de cada dia nos dai hoje

Há quase três anos trabalho no mesmo local e divido o computador da sala com uma outra colega de outro turno, que sempre coloca imagens de santos na área de trabalho. Eu chego, todos os dias, quando ela já foi embora e usou o equipamento para seu serviço, ligo-o de novo, tiro a imagem e começo meu turno de trabalho. No outro dia ela coloca de novo. E assim vamos durante todo esse tempo. Não me incomodo de tirar o santo e colocar o logo da UFG no lugar, mas já me perguntaram “se eu não gostava de santo”. Respondi que “não gosto e nem desgosto, simplesmente não acredito”. E retrucaram: “então, por que você tira?” e expliquei que “como estou em um ambiente de trabalho e, portanto, os equipamentos que utilizo não são meus e sim da instituição, ou seja, trata-se de um computador institucional, creio que, por esse motivo, e por ele ser usado por mais de uma pessoa, ele não deve ser um objeto pessoal, de manifestação de gostos, credos, preferências, religião ou o que for; que o melhor ambiente para isso talvez seja um notebook pessoal ou ainda um computador de casa; que creio que no trabalho devemos entender que os equipamentos são institucionais e, sobretudo, de uso coletivo, mesmo que se trabalhe anos com estes”. Lidei e lido com caras feias até hoje por isso, mas não mudo meu posicionamento. Continuo retirando as imagens de santos do computador de uso coletivo de uma instituição pública e, em tese, laica, e substituindo pelo símbolo da própria instituição (nada mais lógico). E continuo achando que o santo ficaria bem melhor, até mais bonito (pra quem gosta) e com seu real significado e contexto nos objetos de uso pessoal de quem acredita, e não no ambiente de trabalho público. Não quero com isso que pensem (como muitos têm achado ao ler meus posts críticos em meu perfil) que estou atacando alguém. De forma alguma. E não se trata de uma “implicância boba”, como muitos podem argumentar. Trata-se de refletir: estado laico, minha gente, infelizmente, está muito mais longe do que a gente acredita! Não só por leis aprovadas recentemente sobre a “moral e os bons costumes” ou tantas outras atrocidades das bancadas evangélica e católica no Brasil. É preciso que se conscientize e mude pequenas atitudes do dia a dia, como o uso e manifestações em instituições públicas, em equipamentos (como nesse caso), como a cruz nos órgãos públicos e, sobretudo, a falta de respeito e até a falta de disponibilidade para (ao menos) tentar buscar o entendimento dos argumentos daqueles que não acreditam.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Mea Culpa ou o Manifesto dos Ciumentos (ou ainda: Amor Livre no dos outros é refresco!)

Eu posso ser feminista, comunista, libertária, vegetariana e ateia, mas, eu, como todo mundo, sou limitada e sou, sobretudo, humana. A história de que ciúme é sentimento de posse e muito cristão, que amor livre é legal e relacionamento aberto inevitável à longo prazo me convence na teoria, mas, talvez, eu tenha que ter um pouco mais de 'prática revolucionária' para aprender a lidar com meu próprio ciúme voraz e possessivo. Ou talvez tenham que me convencer de forma mais veemente de que ciúme represente apenas isso. É claro que se um indivíduo mata o outro por isso, é patológico. Mas, qual é o limite do 'normal' e do patológico? Quando saber se você só vai morrer de raiva e chorar sozinha em casa ou querer se vingar? Estamos todos isentos disso? Ou somos todos humanos que podemos sentir todas as emoções, sejam elas alegres, felizes e saltitantes ou de ódio, raiva, vingança e ciúme? Eu tenho ciúme, sim, do meu pai, da minha mãe, do meu namorado, do meu irmão, dos meus amigxs, de cachorro, gato, passarinho, timeline e comentários, dos meus livros, da minha vida, das minhas lembranças, das minhas ideias. Isso quer dizer que sou uma louca que deve ser privada de convivência social? Ou isso significa que eu tenho um sério problema de auto-estima, auto-aceitação e insegurança? Que me comparo o tempo todo com os outros e vivo numa eterna competição comigo mesma? Quem fez isso? Eu? Minhas companhias? Meus livros? A Igreja? O capitalismo? A sociedade? Não sei. E nem sei se, nesse momento, devo responder a essa pergunta – pois, como disse, em teoria, eu já sei e concordo com toda a cartilha de “ninguém aguenta comer só arroz e feijão a vida toda”, “somos seres livres”, “a vida e meu corpo são meus e são uma festa”, etc, etc, etc. - e sim à uma outra: quem deve lidar com isso? E respondo: sobretudo, eu. E quem mais sofre com isso também sou eu. Mas, à bem da verdade, devo dizer: estar em um relacionamento com um ciumento não é só “correr riscos”, brigar ou terminar, mas também, saber reconhecer a dor do outro. Ver que isso o faz sofrer muito mais do que a dor que ele mesmo causa. Que sentir ciúme é ruim demais e, principalmente, para quem o sente. Que o ciumento é, na verdade, um fraco, que necessita de entendimento e até compaixão. Que brigar às vezes só aumenta o próprio ciúme, porque, na “mente doentia” de um ciumento, quem se exalta “tem culpa no cartório”; ou ainda: se está brigando e dizendo que não suporta essa característica dele, é porque de fato pensa em procurar outro. Acredite: a maioria deles sabem que estão errados e precisam de ajuda. Portanto, mais paciência – e esconda objetos pontiagudos, rs, rs, brinks - com um ciumento, porque, no fundo, eles também amam. Até demais.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Reflexões sobre o erro

Algumas vezes penso que o pior de quando se faz algo errado não é somente a culpa pelo que fez, mas ter que ficar vendo os dedos dos outros apontados para você. Ouvir a mesma coisa várias vezes e, o que é mais complicado ainda: o rancor, que faz com que o erro seja rememorado sem motivo aparente. Talvez uma boa explicação para esse “rancor” é que ele, na verdade, é uma vaidade travestida, pois quem aponta o erro repetidas vezes o faz para provar que você está errado, logo, ele está certo e... como é bom estar certo, né? Todo mundo é tão cheio de suas certezas, e a essas pessoas eu só posso dispensar a minha pena. Pena por ver que, em uma vida de certezas, há pouco espaço para descobertas. Em uma vida de dedos na cara, há pouco espaço para carinhos no rosto. Em uma vida com tudo muito bem planejado, sem espaço para erros, não espaço também para tentativas, para frios na barriga, para aprendizado, para tapas na cara dados pela própria vida (e não pelos outros), para aquela coisa que, por mais que nos falem, só aprendemos fazendo, ou com o tempo. É, que, sabe, todo mundo já disse, mas a vida não é equação matemática; a vida é história, é química e, é visceralmente fisiológica.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Comunicação Popular, o debate e o processo constituinte no Brasil (1977-1985)

(Em linhas gerais, foi sobre isso que tratei na minha dissertação de mestrado)



Ao final deste trabalho de dissertação onde tivemos acessos às principais questões que perpassaram a classe trabalhadora no processo constituinte brasileiro para a confecção da Constituição de 1988, a última até então promulgada no país, que está em vigência até os dias atuais, percebemos que este não foi um debate feito apenas entre os magistrados ou políticos. A sociedade civil participou através de suas entidades, com propostas e pautas e, sobretudo, com a produção de vasto material a respeito, que iam desde cartilhas explicativas sobre questões básicas da Constituição à jornais periódicos que davam notícias para diversas partes do país sobre o que acontecia em Brasília.
Trabalhamos, sobretudo, ao longo deste trabalho com a perspectiva dos movimentos sociais em relação á Constituinte e como essa era manifestada na Comunicação Popular produzida por estes. Para tratar sobre Comunicação, usamos conceitos importantes, principalmente de Antonio Gramsci, Cicília Peruzzo, Regina Festa e Perseu Abramo.
Vimos que, à princípio, a proposta de convocação de uma Assembléia Constituinte, ainda no final da década de 70, sob a égide dos militares em sua transição lenta, gradual e segura, representava uma alternativa à essa transição, porque se constituía como uma interrupção da institucionalidade autoritária, ou seja, ela seria uma nova institucionalidade e não uma reforma na institucionalidade autoritária como era a pretensão dos militares e forças conservadoras. Porém, a proposta da Constituinte ainda na Ditadura não foi vitoriosa e esta proposta nem era consenso entre os movimentos sociais à época ainda. Muitos ainda buscavam outros meios para a transição, como, por exemplo, a luta pelas Diretas. Vários debates ocorreram desde 1977 a 1985, em outras palavras, desde quando o debate começou a emergir, posteriormente ao Pacote de Abril de 77, até a unificação das oposições antiautocráticas em torno da pauta da Constituinte com o lançamento do Movimento Nacional pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte em 1985. Mas, se os setores antiautocráticos conseguiram se unificar em 1985 em torno desta pauta, devemos lembrar que não era só essa oposição que existia no Brasil no contexto de transição e pós ditadura. Outros setores da sociedade também pautavam a Constituinte, muitos com objetivos e perspectivas bem diferentes do que aquelas levantadas pelos sujeitos históricos oriundos das classes subalternas. Vimos que os mais progressistas defendiam a Assembléia de representantes eleitos com função exclusiva de elaborar a nova Constituição, por esta ter maior representatividade e soberania. Porém, outros defendiam o Congresso Constituinte onde atuariam os deputados federais e senadores eleitos em novembro de 1986 e senadores eleitos em 1982, com acumulação de funções de congressistas e de constituintes, ou seja, uma Constituinte que não seria exclusiva, como era proposta dos trabalhadores, e que seria definida por um processo partidário e eleitoral favorável às forças conservadoras. Vimos, então, que esta foi a proposta aprovada, o que significou uma primeira grande derrota aos movimentos sociais em relação à Constituinte.
A Comunicação Popular nos períodos que antecederam a convocação para o Congresso Constituinte era feita de forma a alertar a população para o processo político que estava por vir, explicar alguns conceitos que tangeriam este debate, falar sobre a história das demais Constituições do Brasil numa perspectiva formativa, levantando a preocupação que estes movimentos tinham em denunciar o processo constituinte controlado pelo governo e pelas classes dominantes, como haviam sido nos demais processos brasileiros.
Com as reformas implementadas por Sarney em 1985 e a certeza de que a Constituinte seria via Congresso, o caráter destas publicações também muda passando agora não só a explicar conceitos, etc, mas também denunciar o caráter excludente de um processo feito via congressual, executando denúncias, já que, para os movimentos sociais, convocar uma Assembléia Constituinte e não um Congresso Constituinte era uma forma de romper com a transição lenta, gradual e segura. Mas, sem cessar a luta, começa-se a partir daí a pensar e produzir cartas de intenções a serem entregues aos candidatos ao Congresso, tentando obter destes garantias de que, se eleitos, lutariam lá dentro pelas pautas elaboradas pelos movimentos populares.
Em novembro de 1986 ocorreram as eleições para Congresso e o PMDB, bem como demais partidos ligados às forças conservadoras, foi o grande vencedor, isto porque foi amparado pelo Plano Cruzado, cuja aprovação popular era alta, mas que já beirava seu colapso próximo às eleições, porém foi mantido artificialmente para o que o governo garantisse maioria no Congresso. Sendo assim, muitos daqueles candidatos para os quais os movimentos sociais haviam entregado suas cartas de intenções não ganharam. A luta, mais uma vez, não parou, mesmo com mais essa derrota. Neste momento, a batalha seria, então, pelo regimento interno. E esta foi uma batalha vitoriosa. Os movimentos sociais conseguiram implementar no Congresso uma dinâmica que contemplasse suas demandas, com a aprovação da possibilidade de protocolarem Emendas Populares. A Comunicação e o movimento popular, neste contexto, então, entram em mais uma nova fase: a de formulações de propostas em assembléias e reuniões e posterior recolhimento das assinaturas para que estas fossem validadas no Congresso. O trabalho, novamente, foi árduo e a Comunicação Popular cumpriu o papel agora de noticiar as propostas, colher outras, dar informes de como este processo estava sendo feito em outras regiões do país, explicar o que eram essas Emendas e, sobretudo, impulsionar a busca por assinaturas, já que estas, segundo os relatos dos sujeitos que atuaram neste processo, nunca eram meros autógrafos, como propagandeado pela Grande Mídia à serviço das forças conservadoras, elas eram fruto de um trabalho de base de debates e convencimentos em diversas esferas da organização popular, com o recolhimentos destas feito em igrejas, sindicatos ou até mesmo, de casa em casa ou ainda no campo. Deste período há relatos riquíssimos como, por exemplo, de comunidades indígenas no Pará, cuja maioria era de analfabetos e que, portanto, para assinarem, deveriam colocar suas digitais e essas eram colhidas com tinta feita de açaí, produzida pela própria comunidade.
Momentos significativos nas mobilizações populares também são percebidos nos relatos sobre as caravanas à Brasília para entrega das emendas e assinaturas. Eram pilhas de papéis que seriam entregues ao Congresso e pessoas que iriam até lá para, não só entregá-las, mas fazer disto um ato político. E estas pautas das emendas populares eram extremamente variadas, tendo em vista que os trabalhos no Congresso foram divididos em oito comissões e dentro destas existiam três subcomissões que tratavam de temas como da soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher, da organização do Estado, da organização dos poderes e sistema de governo, da organização eleitoral, partidária e garantia das instituições, do sistema tributário, orçamento e finanças, da ordem econômica, da ordem social, da família, da educação, cultura e esportes, da ciência e tecnologia e da comunicação, isso citando apenas os temas das comissões. Destas, a recordista de emendas foi a de ordem social, manifestando as reivindicações pungentes da população sobre esta área.
O tempo todo, também, além de todas as demandas anteriormente citadas, a Comunicação Popular do período tinha que tratar também da batalha ideológica sempre travada em relação à Grande Mídia, que, como muitas emissoras eram de forças conservadoras, ligadas à direita, muitas vezes não noticiava o trabalho dos movimentos sociais e quando o fazia, era desqualificando-o.
Com todo este trabalho e mesmo com a desqualificação proferida pela Grande Mídia, o texto do 1º anteprojeto, graças a mobilização popular, trouxe diversos avanços para a classe trabalhadora. Nele já estavam contidos direitos como estabilidade no emprego, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, a unificação do salário-mínimo nacionalmente, a ampliação da licença-maternidade para 120 dias, entre outros. Mas estes avanços não ficariam incólumes, pois estava sendo preparado um golpe por parte da direita, o Golpe do Centrão, grupo de parlamentares organizados pelo próprio governo Sarney em consonância com diversas entidades ligadas às forças conservadoras que tinham o objetivo de desfazer estas conquistas empreendidas pelos trabalhadores na Constituinte até então. A partir deste golpe, muita coisa foi mudada no texto e na atuação dos movimentos sociais. A Comunicação Popular deste período passa, então, a denunciar as práticas do Centrão. As caravanas à Brasília começam a serem barradas, pois o Centrão conseguiu, através de seu golpe de mudança de regimento interno barrar até a entrada de setores populares no Congresso. À estes lutadores sociais, restava a opção de negociar para não perder o que já haviam conseguido. Negocia-se, então diversas pautas, principalmente de as de ordem econômica e social, justamente as recordistas de emendas populares e as que eram, declaradamente, alvo do Centrão.
A Constituição de 1988, portanto, após sua promulgação em cinco de outubro de 1988, se torna dual em seu teor, tendo em vista que o texto final, ao observarmos concessões às camadas populares como direito da infância e do adolescente, extinção do conselho de segurança nacional, criação do SUS, criação do habeas data, criação do mandato de segurança coletivo, etc., a configuram como uma Constituição com caráter democrático liberal em alguns aspectos. Na opinião de diversos estudiosos sobre o tema que citamos ao longo deste trabalho, ninguém saiu plenamente satisfeito com a nova Carta, nem mesmo os setores ligados às forças conservadoras.
Apesar de garantir diversos direitos à classe trabalhadora, e de um certo caráter democrático liberal, não podemos ver nela uma demonstração de democracia em seu sentido literal, como regime político onde o contraditório tem direito a ser sujeito político, disputar a hegemonia, sentar para negociar. Na Constituinte, quando este direito foi dado, logo foi retirado à duros golpes, assim a supremacia do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário foi mantida, bem como a tutela militar, a maior herança autocrática do período de Ditadura . A estrutura partidária só se difere daquela vigente durante a Ditadura por causa da liberdade de criação de novos partidos, mas permanece com a mesma legislação eleitoral aparelhista.
Após este estudo, especificamente em relação à Comunicação Popular, respondendo à nossa hipótese de pesquisa, podemos observar que esta, em contraposição a grande mídia, promoveu uma politização no processo Constituinte, atuando de maneira formativa e informativa, como escola de adultos e com uma atuação partidária, formulando ações e visões de mundo, o que fez com que fossem alcançadas mudanças, mesmo que conjunturais, na realidade e no debate político. Mesmo com a correlação de forças daquele momento e com os mecanismos de controle da burguesia amparada pelos militares, bem como até mesmo a sua forma de elaboração através de um Congresso Constituinte, que também contribuiu para a despolitização do processo, coube aos movimentos sociais a mobilização e a produção da Comunicação Popular para empreenderam um esforço contra-hegemônico dentro do processo Constituinte. Após a Constituição o horizonte ainda era de luta, pela regulamentação de direitos, pelas Constituintes Estaduais e nas eleições presidenciais que estavam por vir. E foi isso que os movimentos sociais fizeram.
Ainda hoje diversos direitos garantidos em Constituição ainda não saíram do papel. Alguns outros já foram modificados por diversas emendas constitucionais implementadas por governos neoliberais que se seguiram no país. Muitos daqueles direitos, que nem foram todos conquistados pelos movimentos sociais à duras penas naquela época, hoje são letras mortas. É comum, até mesmo por parte de juristas, a opinião de que “examinando apenas o conteúdo do texto constitucional, podemos ver um país de alto desenvolvimento na sociedade, na economia e na cultura, com modelo social democrático e uma democracia aperfeiçoada”, como é o caso da opinião do professor de Teoria do Estado da USP e de Teoria do Direito no curso de pós-graduação da PUC-SP, Marcelo Neves (2008). Ele considera ainda que “o texto é de país hiperdesenvolvido, mas a prática constitucional é de um país subdesenvolvido” e complementa dizendo que “no Brasil, uma ampla massa da população é excluída das garantias e direitos fundamentais consagrados pela nossa Lei Maior”. Esta observação do jurista nos parece pertinente e complementamos que esta é uma característica de países periféricos, conforme nos orienta Florestan Fernandes em suas conceituações sobre autocracia burguesa, onde a extrema concentração de riqueza aliada à formas pré-capitalistas garantem uma super exploração do trabalho ao mesmo tempo em que o Estado cria uma blindagem institucional contra a influência das classes subalternas.
A Constituição de 1988 apresenta, então, direitos às classes subalternas, mas muitos deles nunca foram implementados e outros reformados. E, de todo este processo, foi nosso intuito mostrar que, mesmo com esta blindagem institucional às classes subalternas oferecida pelo Estado autocrático burguês no Brasil, estas foram atuantes na elaboração da Carta Magna, na tentativa de se tornarem sujeitos históricos que pautassem o processo, e essa atuação se deu, especialmente, através da Comunicação Popular que integrou, formou e atuou partidariamente nestes movimentos sociais de luta na Constituinte.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Posso me considerar uma privilegiada. Enquanto, infelizmente, sei que muitas crianças crescem sem a presença de ao menos um dos pais, tive, durante toda a minha infância, não só meu pai e minha mãe, como também meu avô, que morou com a gente até a sua morte. Além também de uma família bastante unida, incluindo tios, primos.
A ligação que tive com meu avô beira o inexplicável. Era, além de forte e amorosa, quase telepática. Não é a toa que hoje o tenho tatuado em meu braço. E foi com ele que aprendi que amor não existe apenas entre, com ou para seres humanos. Meu avô, seu Joaquim, um homem simples, “da roça”, como dizem, que só não foi analfabeto porque era autodidata, sabia, em sua sabedoria empírica, que é possível e, mais do que isso, necessário, amar e sobretudo respeitar também os animais, os rios e toda a natureza.
Lembro-me que quando plantávamos alguma coisa no quintal de casa, chegávamos a batizar a planta, dando-lhe nome e até conversando com ela! Parece loucura, mas era além de uma brincadeira de criança, algo que hoje penso que se todos tivessem tido uma oportunidade assim, de aprender um respeito – que muitos não têm sequer à humanos – à natureza, uma outra forma de se relacionar com esta seria mais palpável, e la estaria um pouco mais salva.
Com os animais era o tempo todo referenciando. Como por exemplo quando comíamos demais uma comida muita boa, lembro-me, e hoje repito a frase: “Oh, vontade de ter um bucho de égua!”. Conhecimento simples, mais importante, inclusive, para entender que isso é uma piada, afinal equinos, além de terem um porte grande, correspondente a todos os seus órgãos, inclusive o estômago (bucho), também têm o costume de regurgitar para poder comer mais.
O primeiro cachorro lá de casa curiosamente se chamava Sadam, um vira-lata encontrado na rua pelo meu avô e meu irmão quando eu não tinha nem um ano de idade. Na época, morávamos em apartamento e minha mãe disse que não poderíamos ficar com ele por esse motivo. Mas, qual o quê, todos ali odiavam viver apertados naquele cubículo e então mudamos para uma casa, onde poderíamos ter o Sadam, mais espaço, liberdade e felicidade.
E era, de fato, uma alegria viver em uma casa onde poderíamos sentar na porta todos os dias eu, Sadam e meu avô às cinco horas da tarde para esperar meus pais chegarem do trabalho e meu irmão da escola. Quando chegavam, Sadam abanava o rabo e pulava, eu também pulava e ia pro colo, enquanto meu avô cumprimentava e ia para a cozinha fazer café para meus pais e mingau para meu irmão. Cada uma, à sua maneira, demonstrava seu afeto: com abano de rabo, com pulos no colo ou com cheiro de café, eram todas demonstrações de carinho genuínas e harmoniosas em nossa casa.
Mas Sadam não era apenas esse cachorro calmo e afetuoso da espera sentado à porta de casa. Quando tinha cachorra no cio no bairro, não sei como, mas ele descobria e dava um jeito de escapulir e ir atrás. Se metia em briga, ficava dias fora de casa e meu avô sempre dizia que ele era boêmio.
Em várias dessas fugidas ele não voltava e ficávamos desesperados de preocupação. Rodávamos o bairro inteiro de carro, a pé, bicicleta, patins; perguntávamos vizinhos e, por fim, algumas vezes, acabávamos recorrendo à opção mais dolorosa: ir ao CCZ ver se a carrocinha havia passado e recolhido-o para a morte.
Muitos nos perguntavam como iriamos reconhecê-lo lá, em meio a tantos cachorros desesperados por um lar, o Sadam, que era tão comum e como tantos outros. Mas isso não era problema: quando nos via indo resgatá-lo Sadam pulava da mesma forma que pulava para receber meus pais e aí não tínhamos dúvida de que era ele.
Meu avô nunca me deixou entrar nesses resgates com ele no CCZ. Dizia que eu não estava preparada para aquilo. Hoje entendo o que fazem com os bichos lá e acho que até hoje não estou preparada para ver tamanha crueldade com animais, por esse e outros motivos sequer como carne. Me parece incongruente que eu ame tanto meus cachorros e gatos e possa empreender tamanho sofrimento à outras espécies de animais.
São muitas as histórias de Sadam, Dalila e Lucy em nossa família nesses 24 anos de presenças constantes e amorosas. Sobre Dalila ainda não consigo falar, a dor de sua perda ainda é muito recente. Lucy está conosco até hoje. Sadam se foi com 16 anos em 2005, quatro anos depois de meu avô que, quando se foi, o deixou uivando no portão durante um mês. Naquela época, lembro-me de me sentir culpada por não saber consolar a dor de Sadam, mas, como consolá-lo, se perder meu avô foi a coisa mais difícil que já tive que enfrentar? E então, uivávamos e chorávamos juntos a perda de nosso companheiro do portão e da vida.