segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Comunicação Popular, o debate e o processo constituinte no Brasil (1977-1985)

(Em linhas gerais, foi sobre isso que tratei na minha dissertação de mestrado)



Ao final deste trabalho de dissertação onde tivemos acessos às principais questões que perpassaram a classe trabalhadora no processo constituinte brasileiro para a confecção da Constituição de 1988, a última até então promulgada no país, que está em vigência até os dias atuais, percebemos que este não foi um debate feito apenas entre os magistrados ou políticos. A sociedade civil participou através de suas entidades, com propostas e pautas e, sobretudo, com a produção de vasto material a respeito, que iam desde cartilhas explicativas sobre questões básicas da Constituição à jornais periódicos que davam notícias para diversas partes do país sobre o que acontecia em Brasília.
Trabalhamos, sobretudo, ao longo deste trabalho com a perspectiva dos movimentos sociais em relação á Constituinte e como essa era manifestada na Comunicação Popular produzida por estes. Para tratar sobre Comunicação, usamos conceitos importantes, principalmente de Antonio Gramsci, Cicília Peruzzo, Regina Festa e Perseu Abramo.
Vimos que, à princípio, a proposta de convocação de uma Assembléia Constituinte, ainda no final da década de 70, sob a égide dos militares em sua transição lenta, gradual e segura, representava uma alternativa à essa transição, porque se constituía como uma interrupção da institucionalidade autoritária, ou seja, ela seria uma nova institucionalidade e não uma reforma na institucionalidade autoritária como era a pretensão dos militares e forças conservadoras. Porém, a proposta da Constituinte ainda na Ditadura não foi vitoriosa e esta proposta nem era consenso entre os movimentos sociais à época ainda. Muitos ainda buscavam outros meios para a transição, como, por exemplo, a luta pelas Diretas. Vários debates ocorreram desde 1977 a 1985, em outras palavras, desde quando o debate começou a emergir, posteriormente ao Pacote de Abril de 77, até a unificação das oposições antiautocráticas em torno da pauta da Constituinte com o lançamento do Movimento Nacional pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte em 1985. Mas, se os setores antiautocráticos conseguiram se unificar em 1985 em torno desta pauta, devemos lembrar que não era só essa oposição que existia no Brasil no contexto de transição e pós ditadura. Outros setores da sociedade também pautavam a Constituinte, muitos com objetivos e perspectivas bem diferentes do que aquelas levantadas pelos sujeitos históricos oriundos das classes subalternas. Vimos que os mais progressistas defendiam a Assembléia de representantes eleitos com função exclusiva de elaborar a nova Constituição, por esta ter maior representatividade e soberania. Porém, outros defendiam o Congresso Constituinte onde atuariam os deputados federais e senadores eleitos em novembro de 1986 e senadores eleitos em 1982, com acumulação de funções de congressistas e de constituintes, ou seja, uma Constituinte que não seria exclusiva, como era proposta dos trabalhadores, e que seria definida por um processo partidário e eleitoral favorável às forças conservadoras. Vimos, então, que esta foi a proposta aprovada, o que significou uma primeira grande derrota aos movimentos sociais em relação à Constituinte.
A Comunicação Popular nos períodos que antecederam a convocação para o Congresso Constituinte era feita de forma a alertar a população para o processo político que estava por vir, explicar alguns conceitos que tangeriam este debate, falar sobre a história das demais Constituições do Brasil numa perspectiva formativa, levantando a preocupação que estes movimentos tinham em denunciar o processo constituinte controlado pelo governo e pelas classes dominantes, como haviam sido nos demais processos brasileiros.
Com as reformas implementadas por Sarney em 1985 e a certeza de que a Constituinte seria via Congresso, o caráter destas publicações também muda passando agora não só a explicar conceitos, etc, mas também denunciar o caráter excludente de um processo feito via congressual, executando denúncias, já que, para os movimentos sociais, convocar uma Assembléia Constituinte e não um Congresso Constituinte era uma forma de romper com a transição lenta, gradual e segura. Mas, sem cessar a luta, começa-se a partir daí a pensar e produzir cartas de intenções a serem entregues aos candidatos ao Congresso, tentando obter destes garantias de que, se eleitos, lutariam lá dentro pelas pautas elaboradas pelos movimentos populares.
Em novembro de 1986 ocorreram as eleições para Congresso e o PMDB, bem como demais partidos ligados às forças conservadoras, foi o grande vencedor, isto porque foi amparado pelo Plano Cruzado, cuja aprovação popular era alta, mas que já beirava seu colapso próximo às eleições, porém foi mantido artificialmente para o que o governo garantisse maioria no Congresso. Sendo assim, muitos daqueles candidatos para os quais os movimentos sociais haviam entregado suas cartas de intenções não ganharam. A luta, mais uma vez, não parou, mesmo com mais essa derrota. Neste momento, a batalha seria, então, pelo regimento interno. E esta foi uma batalha vitoriosa. Os movimentos sociais conseguiram implementar no Congresso uma dinâmica que contemplasse suas demandas, com a aprovação da possibilidade de protocolarem Emendas Populares. A Comunicação e o movimento popular, neste contexto, então, entram em mais uma nova fase: a de formulações de propostas em assembléias e reuniões e posterior recolhimento das assinaturas para que estas fossem validadas no Congresso. O trabalho, novamente, foi árduo e a Comunicação Popular cumpriu o papel agora de noticiar as propostas, colher outras, dar informes de como este processo estava sendo feito em outras regiões do país, explicar o que eram essas Emendas e, sobretudo, impulsionar a busca por assinaturas, já que estas, segundo os relatos dos sujeitos que atuaram neste processo, nunca eram meros autógrafos, como propagandeado pela Grande Mídia à serviço das forças conservadoras, elas eram fruto de um trabalho de base de debates e convencimentos em diversas esferas da organização popular, com o recolhimentos destas feito em igrejas, sindicatos ou até mesmo, de casa em casa ou ainda no campo. Deste período há relatos riquíssimos como, por exemplo, de comunidades indígenas no Pará, cuja maioria era de analfabetos e que, portanto, para assinarem, deveriam colocar suas digitais e essas eram colhidas com tinta feita de açaí, produzida pela própria comunidade.
Momentos significativos nas mobilizações populares também são percebidos nos relatos sobre as caravanas à Brasília para entrega das emendas e assinaturas. Eram pilhas de papéis que seriam entregues ao Congresso e pessoas que iriam até lá para, não só entregá-las, mas fazer disto um ato político. E estas pautas das emendas populares eram extremamente variadas, tendo em vista que os trabalhos no Congresso foram divididos em oito comissões e dentro destas existiam três subcomissões que tratavam de temas como da soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher, da organização do Estado, da organização dos poderes e sistema de governo, da organização eleitoral, partidária e garantia das instituições, do sistema tributário, orçamento e finanças, da ordem econômica, da ordem social, da família, da educação, cultura e esportes, da ciência e tecnologia e da comunicação, isso citando apenas os temas das comissões. Destas, a recordista de emendas foi a de ordem social, manifestando as reivindicações pungentes da população sobre esta área.
O tempo todo, também, além de todas as demandas anteriormente citadas, a Comunicação Popular do período tinha que tratar também da batalha ideológica sempre travada em relação à Grande Mídia, que, como muitas emissoras eram de forças conservadoras, ligadas à direita, muitas vezes não noticiava o trabalho dos movimentos sociais e quando o fazia, era desqualificando-o.
Com todo este trabalho e mesmo com a desqualificação proferida pela Grande Mídia, o texto do 1º anteprojeto, graças a mobilização popular, trouxe diversos avanços para a classe trabalhadora. Nele já estavam contidos direitos como estabilidade no emprego, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, a unificação do salário-mínimo nacionalmente, a ampliação da licença-maternidade para 120 dias, entre outros. Mas estes avanços não ficariam incólumes, pois estava sendo preparado um golpe por parte da direita, o Golpe do Centrão, grupo de parlamentares organizados pelo próprio governo Sarney em consonância com diversas entidades ligadas às forças conservadoras que tinham o objetivo de desfazer estas conquistas empreendidas pelos trabalhadores na Constituinte até então. A partir deste golpe, muita coisa foi mudada no texto e na atuação dos movimentos sociais. A Comunicação Popular deste período passa, então, a denunciar as práticas do Centrão. As caravanas à Brasília começam a serem barradas, pois o Centrão conseguiu, através de seu golpe de mudança de regimento interno barrar até a entrada de setores populares no Congresso. À estes lutadores sociais, restava a opção de negociar para não perder o que já haviam conseguido. Negocia-se, então diversas pautas, principalmente de as de ordem econômica e social, justamente as recordistas de emendas populares e as que eram, declaradamente, alvo do Centrão.
A Constituição de 1988, portanto, após sua promulgação em cinco de outubro de 1988, se torna dual em seu teor, tendo em vista que o texto final, ao observarmos concessões às camadas populares como direito da infância e do adolescente, extinção do conselho de segurança nacional, criação do SUS, criação do habeas data, criação do mandato de segurança coletivo, etc., a configuram como uma Constituição com caráter democrático liberal em alguns aspectos. Na opinião de diversos estudiosos sobre o tema que citamos ao longo deste trabalho, ninguém saiu plenamente satisfeito com a nova Carta, nem mesmo os setores ligados às forças conservadoras.
Apesar de garantir diversos direitos à classe trabalhadora, e de um certo caráter democrático liberal, não podemos ver nela uma demonstração de democracia em seu sentido literal, como regime político onde o contraditório tem direito a ser sujeito político, disputar a hegemonia, sentar para negociar. Na Constituinte, quando este direito foi dado, logo foi retirado à duros golpes, assim a supremacia do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário foi mantida, bem como a tutela militar, a maior herança autocrática do período de Ditadura . A estrutura partidária só se difere daquela vigente durante a Ditadura por causa da liberdade de criação de novos partidos, mas permanece com a mesma legislação eleitoral aparelhista.
Após este estudo, especificamente em relação à Comunicação Popular, respondendo à nossa hipótese de pesquisa, podemos observar que esta, em contraposição a grande mídia, promoveu uma politização no processo Constituinte, atuando de maneira formativa e informativa, como escola de adultos e com uma atuação partidária, formulando ações e visões de mundo, o que fez com que fossem alcançadas mudanças, mesmo que conjunturais, na realidade e no debate político. Mesmo com a correlação de forças daquele momento e com os mecanismos de controle da burguesia amparada pelos militares, bem como até mesmo a sua forma de elaboração através de um Congresso Constituinte, que também contribuiu para a despolitização do processo, coube aos movimentos sociais a mobilização e a produção da Comunicação Popular para empreenderam um esforço contra-hegemônico dentro do processo Constituinte. Após a Constituição o horizonte ainda era de luta, pela regulamentação de direitos, pelas Constituintes Estaduais e nas eleições presidenciais que estavam por vir. E foi isso que os movimentos sociais fizeram.
Ainda hoje diversos direitos garantidos em Constituição ainda não saíram do papel. Alguns outros já foram modificados por diversas emendas constitucionais implementadas por governos neoliberais que se seguiram no país. Muitos daqueles direitos, que nem foram todos conquistados pelos movimentos sociais à duras penas naquela época, hoje são letras mortas. É comum, até mesmo por parte de juristas, a opinião de que “examinando apenas o conteúdo do texto constitucional, podemos ver um país de alto desenvolvimento na sociedade, na economia e na cultura, com modelo social democrático e uma democracia aperfeiçoada”, como é o caso da opinião do professor de Teoria do Estado da USP e de Teoria do Direito no curso de pós-graduação da PUC-SP, Marcelo Neves (2008). Ele considera ainda que “o texto é de país hiperdesenvolvido, mas a prática constitucional é de um país subdesenvolvido” e complementa dizendo que “no Brasil, uma ampla massa da população é excluída das garantias e direitos fundamentais consagrados pela nossa Lei Maior”. Esta observação do jurista nos parece pertinente e complementamos que esta é uma característica de países periféricos, conforme nos orienta Florestan Fernandes em suas conceituações sobre autocracia burguesa, onde a extrema concentração de riqueza aliada à formas pré-capitalistas garantem uma super exploração do trabalho ao mesmo tempo em que o Estado cria uma blindagem institucional contra a influência das classes subalternas.
A Constituição de 1988 apresenta, então, direitos às classes subalternas, mas muitos deles nunca foram implementados e outros reformados. E, de todo este processo, foi nosso intuito mostrar que, mesmo com esta blindagem institucional às classes subalternas oferecida pelo Estado autocrático burguês no Brasil, estas foram atuantes na elaboração da Carta Magna, na tentativa de se tornarem sujeitos históricos que pautassem o processo, e essa atuação se deu, especialmente, através da Comunicação Popular que integrou, formou e atuou partidariamente nestes movimentos sociais de luta na Constituinte.

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