terça-feira, 6 de novembro de 2012

Posso me considerar uma privilegiada. Enquanto, infelizmente, sei que muitas crianças crescem sem a presença de ao menos um dos pais, tive, durante toda a minha infância, não só meu pai e minha mãe, como também meu avô, que morou com a gente até a sua morte. Além também de uma família bastante unida, incluindo tios, primos.
A ligação que tive com meu avô beira o inexplicável. Era, além de forte e amorosa, quase telepática. Não é a toa que hoje o tenho tatuado em meu braço. E foi com ele que aprendi que amor não existe apenas entre, com ou para seres humanos. Meu avô, seu Joaquim, um homem simples, “da roça”, como dizem, que só não foi analfabeto porque era autodidata, sabia, em sua sabedoria empírica, que é possível e, mais do que isso, necessário, amar e sobretudo respeitar também os animais, os rios e toda a natureza.
Lembro-me que quando plantávamos alguma coisa no quintal de casa, chegávamos a batizar a planta, dando-lhe nome e até conversando com ela! Parece loucura, mas era além de uma brincadeira de criança, algo que hoje penso que se todos tivessem tido uma oportunidade assim, de aprender um respeito – que muitos não têm sequer à humanos – à natureza, uma outra forma de se relacionar com esta seria mais palpável, e la estaria um pouco mais salva.
Com os animais era o tempo todo referenciando. Como por exemplo quando comíamos demais uma comida muita boa, lembro-me, e hoje repito a frase: “Oh, vontade de ter um bucho de égua!”. Conhecimento simples, mais importante, inclusive, para entender que isso é uma piada, afinal equinos, além de terem um porte grande, correspondente a todos os seus órgãos, inclusive o estômago (bucho), também têm o costume de regurgitar para poder comer mais.
O primeiro cachorro lá de casa curiosamente se chamava Sadam, um vira-lata encontrado na rua pelo meu avô e meu irmão quando eu não tinha nem um ano de idade. Na época, morávamos em apartamento e minha mãe disse que não poderíamos ficar com ele por esse motivo. Mas, qual o quê, todos ali odiavam viver apertados naquele cubículo e então mudamos para uma casa, onde poderíamos ter o Sadam, mais espaço, liberdade e felicidade.
E era, de fato, uma alegria viver em uma casa onde poderíamos sentar na porta todos os dias eu, Sadam e meu avô às cinco horas da tarde para esperar meus pais chegarem do trabalho e meu irmão da escola. Quando chegavam, Sadam abanava o rabo e pulava, eu também pulava e ia pro colo, enquanto meu avô cumprimentava e ia para a cozinha fazer café para meus pais e mingau para meu irmão. Cada uma, à sua maneira, demonstrava seu afeto: com abano de rabo, com pulos no colo ou com cheiro de café, eram todas demonstrações de carinho genuínas e harmoniosas em nossa casa.
Mas Sadam não era apenas esse cachorro calmo e afetuoso da espera sentado à porta de casa. Quando tinha cachorra no cio no bairro, não sei como, mas ele descobria e dava um jeito de escapulir e ir atrás. Se metia em briga, ficava dias fora de casa e meu avô sempre dizia que ele era boêmio.
Em várias dessas fugidas ele não voltava e ficávamos desesperados de preocupação. Rodávamos o bairro inteiro de carro, a pé, bicicleta, patins; perguntávamos vizinhos e, por fim, algumas vezes, acabávamos recorrendo à opção mais dolorosa: ir ao CCZ ver se a carrocinha havia passado e recolhido-o para a morte.
Muitos nos perguntavam como iriamos reconhecê-lo lá, em meio a tantos cachorros desesperados por um lar, o Sadam, que era tão comum e como tantos outros. Mas isso não era problema: quando nos via indo resgatá-lo Sadam pulava da mesma forma que pulava para receber meus pais e aí não tínhamos dúvida de que era ele.
Meu avô nunca me deixou entrar nesses resgates com ele no CCZ. Dizia que eu não estava preparada para aquilo. Hoje entendo o que fazem com os bichos lá e acho que até hoje não estou preparada para ver tamanha crueldade com animais, por esse e outros motivos sequer como carne. Me parece incongruente que eu ame tanto meus cachorros e gatos e possa empreender tamanho sofrimento à outras espécies de animais.
São muitas as histórias de Sadam, Dalila e Lucy em nossa família nesses 24 anos de presenças constantes e amorosas. Sobre Dalila ainda não consigo falar, a dor de sua perda ainda é muito recente. Lucy está conosco até hoje. Sadam se foi com 16 anos em 2005, quatro anos depois de meu avô que, quando se foi, o deixou uivando no portão durante um mês. Naquela época, lembro-me de me sentir culpada por não saber consolar a dor de Sadam, mas, como consolá-lo, se perder meu avô foi a coisa mais difícil que já tive que enfrentar? E então, uivávamos e chorávamos juntos a perda de nosso companheiro do portão e da vida.

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