quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Starfish

(Texto que fiz para o primeiro zine do Coletivo Feminista Starfish em agosto de 2012.)

Fizemos a Marcha das Vadias em Goiânia e isso parece ter incomodado muita gente. Não que em Goiânia não tivesse outros movimentos feministas, de gênero, etc, como alguém afirmou em uma de nossas reuniões deixando outra parcela desta descontente. Aqui sempre teve movimentos de gênero, sim, sempre teve gente que lutou para ser reconhecido, respeitado e até protegido pelas leis do Estado ou convenções sociais. Colcha de Retalhos, Transas do Corpo, Invertendo a Rota e tantos outros movimentos e até mesmo pessoas que individualmente sempre lutaram nessa terra do pequi têm o nosso respeito, referência e espelho pelo seu acúmulo teórico e prático, pela sua antecedência que tanto nos ensina quanto à forma de lutar.
Mas, então, o que trazemos de novo, se tantos já lutaram e continuam lutando? Por que não se integrar a outros grupos ao invés de fundar outro? Por que esta luta, especificamente, nos dias atuais?
É verdade. Pra quê lutar contra o machismo se tantos precisam de educação? Pra quê denunciar a homofobia e o preconceito se as raízes destes estão em questões mais profundas? Por que falar sobre aborto, prostituição e respeito se existem tantas outras mazelas na sociedade que são mais fáceis de serem acessadas e menos polêmicas se forem faladas? Por que lutar por gênero “esquecendo-se” da classe? E por que, logo vocês, querem falar sobre a luta de mulheres, meninas que são? Por que vocês não aceitam homens, por que vocês não me deixam te ajudar, por que vocês não querem minha instrução messiânica como um guia? Por que vocês começaram com isso agora? Por que é um grupo fechado, quase secreto?
Estas e outras frases foram algumas pérolas que escutamos em nossa curta jornada ‘starfishiana’ e pretendemos, então, dialogar, na tentativa de desmistificar o que já é mito, muito antes de ser contado.
A nossa jornada de luta ou não, histórias de vida e experiências acumuladas são distintas em diversos aspectos e culminou de se encontrarem agora. E não que elas digam respeito a alguém, pois são histórias de esfera íntima, e menos porque temos que dar satisfação para algo ou alguém, mas porque as unidades que encontramos na luta pública partem de algum lugar da esfera privada que não são ‘privilégios’ ou inéditas à nossa realidade, mas é a realidade de milhares de mulheres, em graus diferentes de acontecimentos que geralmente não merecem respeitabilidade de quem vê, mas que, para nós, tocam profundo em um mesmo lugar que só quem passa reconhece. Daí isso já responde uma das perguntas: por que não tem homens? Somos contra homens? De forma alguma, os amamos da mesma forma que amamos as mulheres e os animais, mas é que tem coisas que, para não parecer uma luta artificial e superficial, precisa antes ser sentida, e isso, com certeza, só quem é mulher sente. O homem pode ter noção e se solidarizar ao ver uma mãe que criou sozinha a filha desde que esta era ainda feto. Vários homens com certeza já fizeram isso e têm nossa admiração, mas só quem é mulher sabe o que é passar por isso e ainda perceber os olhares de repressão e estranhamento da sociedade ao ver aquela mulher se virando sozinha, criando a filha sozinha, batalhando, trabalhando, cuidando, precisando de cuidados que muitas vezes não foram encontrados, se desesperando e passando por percalços que foram ainda mais piorados por saber que a filha crescia sem a referência do pai. O homem pode se solidarizar e fazer a escolha madura e anti preconceituosa de não tratar mulheres como objeto em nenhum lugar, instância, tempo ou espaço. Mas só a mulher sabe o que é - em todos os lugares, instâncias, tempos e espaços – ser desrespeitada e tratada como objeto, da cantada na rua às piadinhas ‘sem intenção’, do salário menor no fim do mês simplesmente por sua condição de ser mulher, do abuso quando criança e até hoje quando a mão em seu corpo é muito mais rápida do que o grito contido; quando a vergonha e o trauma pelo que passou sem nem saber o que aquilo era é tão grande que parece intransponível, mesmo hoje, vinte anos depois.
Então, por que lutar contra o machismo? Pela resposta óbvia: por que isso nos toca. Por que isso, em algum momento de nossas vidas, nos tocou de forma profunda, em dores que precisávamos, antes de qualquer coisa, desabafar, contar, dizer para alguém “eu sinto isso” e ouvir de lá um “eu também”. Precisávamos nos conhecer, precisávamos ver que não estamos sozinhas, precisávamos encontrar o apoio que tantas vezes nos foi negado e precisávamos fazer desta dor íntima, desta conversa privada, uma perspectiva de luta pública para que outras mães, crianças e meninas não precisassem mais sentir vergonha por terem sido oprimidas e desrespeitadas. Precisávamos, muito antes de ler sobre o ‘referente ausente’ e todos os conceitos que nos são explicados, explicar uma para as outras quais eram os nossos referentes e o que havia sido ausente. E dessa forma nossa, entre amigas, entre, antes de companheiras de luta, mas entre confidentes, nos descobrimos um pouco, nos fortalecemos um pouco, nos blindamos de apoio para saber que indo para o público, o nosso privado seria tocado e exposto, mas que não seria mais um problema tão grande, por que agora estávamos ali enquanto oito, dez, vinte, trezentas... A ajuda que precisávamos era muito maior do que a dos livros que poderiam nos emprestar. Os livros são importantes, sem dúvida e, assim como referendamos os movimentos goianienses mais antigos, prestamos nossa homenagem também à Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Maria da Penha e tantas outras e ousamos acreditar que elas, se nos conhecessem não fariam patrulha ideológica nos mandando parar de ler blogs e ler seus livros e sim reconheceria que um passo estava sendo dado e nos agradeceria por estar, de alguma forma, da forma como encontramos, continuando uma luta que um dia elas começaram e tanto sofreram por isso.
E também estamos sofrendo, em muito menor proporção do que as prostitutas do DERGO que ousamos defender de piadas de mau gosto, é verdade, mas sofremos por falar. Sofremos porque nos acostumaram caladas, dando risadas forçadas de piadas infames; por que nos acostumaram a chorar sozinha em casa e permanecer lá, para quem ninguém visse o que todos buscaram esconder: que havíamos sido humilhadas na frente de todo mundo.
‘E cadê o recorte de classe?’, alguém pode dizer. ‘Cadê vocês indo para a periferia?’ ‘Vocês são ricas ou de classe média e não sabem o que acontece na quebrada’, também já ouvimos. E respondemos que nem todas as acusações que nos taxam são verdadeiras, mas algumas são, sim. Nem todas são ricas ou de classe média, mas isso ninguém sabe e nem procurou saber. Nem todas são tão alienadas assim, e muitas se travestiram com essa máscara de alienada para serem aceitas por aqueles que agora não nos suportam em nossa fase mais ‘desalienação’. Mas, de fato, damos razão de que temos muito o que conhecer, temos muitas realidades que queremos acessar, temos muitos livros para ler e muitas histórias para ouvir e contar, e estamos buscando, um passo de cada vez, com as forças que temos, com as forças que outras estão nos dando, com a força que as próprias críticas nos dão, diariamente, de saber que se estamos sendo criticadas é por que tem muita gente que de alguma forma também está sendo tocada (o) e incomodada (o).
Demos um passo, dois, alguns e queremos dar mais, por que temos vontade e entendemos que o querer deve ser valorizado como quase a metade de um processo de mudança. Pretendemos despertar em nós e em outras e outros mais quereres, mais vontade de luta, mais vontade de mudança, num feminismo que estamos descobrindo no combate diário às opressões.
Muito prazer, nós também estamos nos conhecendo. Nós somos o Starfish.

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